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RECORDAÇÃO: DR. ESPIR FELIPPE DA SILVA, O ADVOGADO DO POVO


A vida em Guaxupé nos anos 40/50/60, embora aparentemente tranquila, também apresentava a sua face árdua. Eram cenas cotidianas que não ficaram marcadas em fotos ou em registros históricos da cidade, a não ser em algumas memórias. Trata-se dos trabalhadores que lutavam bravamente pelas ruas: Verdureiros com suas carroças cheias de hortaliças frescas ainda molhadas pelo orvalho da madrugada; homens batendo palmas nos portões oferecendo ovos caipiras e galinhas vivas com os pés amarrados por tiras de pano; vendedores de doces com seus tabuleiros com aroma de açúcar mascavo, amendoim e côco; pequenos engraxates descalços com suas caixas penduradas nos ombros; moças simplórias trajando vestidos de chita procurando casa de família para trabalhar em troca de cama e comida; homens com latões pesados de leite enchendo os vasilhames das donas de casa; trabalhadores madrugadores ajeitando os pães ainda quentinhos nas janelas entreabertas; lavadeiras recolhendo ou entregando rechonchudas trouxas de roupas as quais carregavam apoiadas sobre suas cabeças; mendigos com semblantes sofridos estendendo as mãos encardidas pedindo um ‘adjutorinho pelo amor de Deus’... Assim discorria o dia a dia da vidinha que eu conheci durante a infância e dela nunca me esqueci. E são essas lembranças que me trazem de volta, além da imagem de meu pai, a de um advogado que soube compreender, respeitar, valorizar e proteger os cidadãos mais modestos da cidade. Se nome era: Dr. Espir Felippe da Silva.


CONVITE FEITO PELA REVISTA MÍDIA

Nesta edição, tive a grata surpresa ao ser solicitada pelo editor-chefe da Revista Mídia, jornalista Ricardo Dias, para escrever um pouco sobre a vida de Dr. Espir Felippe da Silva. E mais do que uma homenagem, o intento seria o de relembrar uma das personalidades mais marcantes que Guaxupé conheceu em tempos passados: Dr. Espir, um nome que jamais deverá ser esquecido ou tirado das páginas que contam a história da cidade.

Dr. Espir ajudou a muitos guaxupeanos juntamente com a advocacia e a generosidade. Nunca se gabou dos bens que praticava e procurava sempre não expor seus feitos humanitários. Muito do que é narrado neste texto foi-me revelado por pessoas da cidade que ainda se lembram de sua bondade. Durante toda a vida, aplicou fielmente o ensinamento: “Não saiba a tua mão direita o que fez a tua mão esquerda”.

Por essa razão, relutei durante alguns dias antes de começar a escrever nesta coluna fatos que edificam vigorosamente a personalidade de meu pai. Porém, mesmo ciente de que se ele estivesse neste mundo iria tentar me impedir de evidenciar tais declarações na mídia, após muito refletir eu me decidi agir como jornalista e não como filha. Concluí que valeria a pena fazer anotações nesta página sobre o que foi cultivado por Dr. Espir na cidade. Acredito que, muito mais do que um personagem que tanto bem fez a Guaxupé, enquanto viveu na cidade Dr. Espir foi um dos cidadãos mais queridos pelo povo guaxupeano e, consequentemente, muitos gostariam que seu nome fosse reavivado. Portanto, agradeço profundamente ao jornalista e amigo Ricardo Dias por ter me convencido do quão é valioso para a cidade e para a revista relembrar Dr. Espir com muito apreço nesta edição de agosto, mês em que ele comemorava seu aniversário, sim, também mês do Dias dos Pais.


SUAS FUNÇÕES COMO ADVOGADO EM GUAXUPÉ


Durante longa data, Dr. Espir Felippe da Silva, mineiro nascido na cidade de Nova Resente, foi nomeado em Guaxupé pelos juízes como Advogado Dativo para atuar na defesa de pessoas hipossuficientes. Isso ocorre quando não há um membro da defensoria pública na Comarca. A nomeação do Advogado Dativo se faz para assegurar direitos estabelecidos na Constituição.


Como advogado, Dr. Espir também ocupou o cargo de Presidente da OAB. Como político, foi vereador duas vezes e, em um dos mandatos, Presidente da Câmara Municipal.

Além do Direito, Dr. Espir dedicou-se ao ensino. Ocupou o cargo de professor de História na Academia de Comércio São José.


O AROMA DO CIGARRO DE PALHA

Muitos dos clientes do escritório de advocacia do Dr. Espir que operava em um dos cômodos de sua pequena casa eram funcionários de fazendas que cuidavam de gado, arado, plantio e colheita. Habitavam casas humildes e poucas perspectivas havia para que pudessem ter um futuro promissor. Mãos calejadas pela labuta diária, eram pessoas de alma pura e, ao mesmo tempo, desconfiadas, como todo bom caboclo se gabava de ser. Contudo, os roceiros depositavam no advogado profunda confiabilidade. A maioria era analfabeta e entregava em suas mãos todas as documentações para que ele pudesse resolver questões burocráticas com inventários, vendas, compras, entre outros serviços. Quando o advogado lhes apresentava papéis para assinar, faziam-no sem medo de ludíbrios e nunca se decepcionaram com a honestidade do profissional.


Havia em Dr. Espir uma mansidão que fazia com que as pessoas mais simples se sentissem bem acolhidas. Muitas vezes, tornava-se difícil aos caboclos compreenderem o porquê disso ou o porquê de aquilo outro em meio a tantos termos jurídicos. Com seu jeito paternal, o advogado lhes explicava os motivos fazendo uso de expressões idiomáticas caipiras para que melhor pudessem entendê-lo. Era, de certa forma, paradoxal ver aquele homem bem vestido, sempre elegante e dotado de um rico vocabulário pela sua dedicação diária à leitura, proferir com tanta fluência vocábulos puramente regionalistas. Enquanto tudo não ficasse bem assimilado, ele não permitia que nada fosse assinado pelos clientes, ainda que lhes dissessem que as coisas estariam bem do jeito que ele lhes determinasse.

Sempre que os roceiros chegavam à sua residência, erguiam levemente o chapéu da cabeça como gesto de cordialidade colocando-o, em seguida, embaixo do braço como sinal de respeito à casa a qual adentravam. Comumente, deixavam seus cavalos próximos às calçadas com as cordas envoltas ao redor de um poste quando não havia argolas de aço fixadas no calçamento. Muitos deles usavam barulhentas esporas agarradas às botas. As roupas que trajavam eram muito limpas e bem passadas com ferros à brasa. Porém, cheiravam à cinza de fogão a lenha, pois eram lavadas com sabão feito com as cinzas do borralho e, ao secarem no varal, conforme o vento soprava recebiam rajadas de fumaça da lenha que saía pela chaminé.


A chegada daquelas pessoas ao modesto escritório do Dr. Espir lhe trazia muitas alegrias e comoção. Era comum levarem à família cestas de frutas, verduras, ovos ou galinhas bem criadas para agradar. As jabuticabas chegavam fresquinhas e com elas a costumeira recomendação: “Cumam logo inhantes delas cumeçá a murchá. Nóis panhamos elas dantes de muntar na carroça prá módi vir pra cá com elas fresquinha”.

Uma vez que eram pessoas de poucas posses, Dr. Espir lhes atendia cobrando o mínimo pelo seu trabalho e, muitas vezes, dependendo da situação, ele nada lhes pedia em troca. Em reconhecimento, os amáveis caipiras davam-lhe o que de melhor tinham a oferecer como gratidão. E com isso, a esposa e os filhos eram por eles lembrados.


Certa vez, uma senhora presenteou-me com um canário do reino que cantava lindamente. Ele viveu 12 anos em minha companhia. Houve uma vez em que ganhei um pote com pêssegos em calda de um senhor. Degustei o doce como se fosse o manjar dos deuses. Em poucos minutos não restava nem uma fatia mais.


Fatos hilários também aconteciam. Um dia, alguém levou um peru que ficou solto no quintal. Pequenina, sentava-me sobre o degrau da porta da cozinha para ouvi-lo gorgolejar. Dias depois, o bichinho silenciou e nunca mais o vi. Talvez, eu o tenha visto sobre a mesa bem assado e temperado sem saber que era ele.


Em uma ocasião, alguém estacionou sua carroça em frente ao portão trazendo um leitão novinho. A intenção do roceiro era que a família o criasse no quintal cimentado para engordá-lo até a chegada do Natal. Trajado, como sempre, de terno e gravata, Dr. Espir segurou o porquinho tentando, a todo custo, mantê-lo bem longe de suas roupas para não sujar. O caboclo esperto percebeu o seu desajeito e falou: “Pode deixar doutô que eu levo ele de vorta prá módi engordá e no natar (Natal) eu trago ele mortinho e limpinho pro senhô”. E a promessa foi cumprida com rigor.


Durante o tempo em que Dr. Espir advogou, caso fosse horário de refeição, nenhum de seus clientes da roça foi embora sem antes almoçar juntamente com a família. Sobre a mesa sempre havia um prato a mais. Ao ser convidado, o caboclo, todo intimidado, sentava-se à mesa com a cabeça e os olhos baixos. Naquele tempo, o hábito dos que eram criados no meio rural era o uso da colher de alumínio para apanhar a comida no prato. Assim, Dr. Espir trocava o garfo por uma colher de sopa e com ela punha-se a comer o arroz e o feijão dizendo: “Sr. Fulano, coma com a colher mesmo que é melhor. Aqui o senhor está em casa”. Sua atitude causava grande alívio ao convidado que deixava o garfo de lado e se agarrava à colher com gosto. Porém, temendo estar comendo mais do que devia, recusava-se a repetir a refeição. Mas meu pai, deliberadamente, enchia-lhe o prato novamente dizendo que ficava contente por ele ter gostado da comida.


Dr. Espir se emocionava quando citava a honestidade daquela gente simples e de boa alma. Ele sempre lhes parcelava o pagamento a perder de vista. Assim, no dia certo do mês, lá estavam os íntegros senhores batendo à nossa porta com o dinheiro nas mãos. Ele sempre dizia com grande respeito e admiração sobre aqueles honrados clientes: “Esses roceiros nunca deixam de cumprir com seus compromissos. Juntam com sacrifício seu pouco dinheirinho para poderem me pagar”. Um importante detalhe: Eles só entregavam o dinheiro da parcela nas mãos do advogado. Era uma questão de honra e felicidade pagar-lhe o que deviam com olhos nos olhos com o intuito de lhe confirmar que foram criados com total integridade.



A lealdade dos caboclos com o Dr. Espir foi deveras comprovada durante uma eleição em que se candidatou a vereador. Sendo um homem de poucos recursos financeiros, ele somente investia em células com o seu nome e número de candidatura para serem distribuídas aos amigos. Ao tomarem conhecimento de que ele disputava uma vaga na Câmara Municipal, os roceiros partiram para a cidade para lhe pedir uma célula, pois tinham receio de que os demais ‘politiqueiros’ os enganassem com números de outros candidatos dizendo pertencer ao advogado. Como resultado, ele foi um dos candidatos mais votados sem a necessidade de investir dinheiro em sua campanha.


Dr. Espir, na segunda vez em que foi eleito vereador, foi escolhido pelos colegas para ocupar o cargo de Presidente da Câmera Municipal. Dizia sempre que não gostava de política. Mas nunca deixou de ser político. Na verdade, ele gostava e ajudar o povo e da cidade.

Importante lembrar que, Dr. Espir atendia toda a população guaxupeana. Foi advogado, inclusive, das freiras do Colégio Imaculada Conceição que nada faziam sem antes consultá-lo.


Obs.: Como foi gratificante ter podido conhecer aqueles afetuosos lavradores que ficaram marcados para sempre em minhas lembranças. Daquela gente querida eu também guardo com saudade o aroma do cigarro de palha, pois era esse o perfume que ficava em minhas mãos depois que eles as seguravam quando se despediam de mim sempre com muito carinho. Ainda sinto a aspereza da palma de suas mãos provocada pelos calos endurecidos pelo tempo e pelo trabalho fastidioso.


RECONCILIAÇÃO, SIM! DESQUITE, NÃO!


É sabido que, o divórcio no Brasil foi instituído em 28 de junho de 1977. Antes desta data, os casais que se decidiam pela separação apelavam pelo desquite.


Assim, Dr. Espir foi procurado diversas vezes para compor e encaminhar o processo legal de desquites. Contudo, ele jamais acatou qualquer um desses pedidos. Com sua diligente paciência, travava um longo diálogo com o casal no intuito de que não houvesse a separação. Sugeria que ambos pensassem melhor, que se acalmassem e levassem em conta a vida em família e a felicidade dos filhos. Em alguns casos ele era bem sucedido e o casal se reconciliava. Em outras circunstâncias, o casal deixava seu escritório contrariado em busca de outro advogado que aceitasse a realizar o processo do desquite.

Em suma, ele nunca admitiu a si mesmo participar, mesmo que profissionalmente, de um final de união. Seus valores, hoje considerados conservadores, levavam-no a agir dessa forma esquecendo-se até que estaria deixando de ganhar seu sustento por não cuidar dessas causas.


Até que, no final da vida, explicou que considerava a família como sendo o vínculo mais importante na existência de um homem e que valia a pena lutar para que nunca se desmoronasse.


Obs.: Lembrando que, o desquite no Brasil não permitia um outro casamento legal. O que levava Dr. Espir à conclusão de que ajudar a preservar uma família, mesmo que em momentos difíceis para o casal, era seu dever também como advogado. Estando ele certo ou errado em sua maneira de pensar, o fato é que nunca deixou de lado os bons sentimentos em função do ganho financeiro.


O REPOUSO NO CINEMA


Por ser sempre paciencioso e extremamente atencioso com todos, Dr. Espir era abordado em qualquer lugar onde estivesse. Do Fórum Judicial até a sua casa levava-se 10 minutos somente caminhando. Porém, para o advogado o tempo ocupado para que chegasse ao lar nunca atingia menos do que duas horas. Sempre que se cruzava com alguém nas ruas, fluía um pedido de opinião, uma orientação jurídica, uma conversa camarada e uma troca amável de amizade. E ele nunca se cruzava com uma pessoa só. A cada três passos uma parada e uma cordial conversa cheia de sorrisos.


Em casa, a todo instante alguém batia palmas no portão: “Dr. Espir está?”. Mesmo de pijama, ele não hesitava em colocar seu terno e gravata e receber quem o procurava. Não havia horário certo. Todo momento era determinado para atender pessoas. E ele nunca reclamava. Para ele era uma missão, um sacerdócio, um jeito de ser feliz. Quando batiam à porta de madrugada, ele se levantava apressado e dizia: “Alguém acaba de ser preso.”. E tal como dizia, era alguém lhe pedindo para que tirasse um familiar da cadeia. Em geral, jovens embriagados que criavam confusão nos bares. Seguia ele com a pessoa até o distrito policial. Lá, assumia a responsabilidade pelo prisioneiro dizendo ser de boa família e que não iria mais se comportar mal. Os delegados não hesitavam em abrir a porta da prisão e liberar a pessoa. Mas não sem antes abraçar o advogado, dar-lhe boas vindas e sorrir por vê-lo no local. Era sempre bem-vindo em qualquer lugar onde estivesse.


Certa vez, foi um grande amigo dele que foi preso por confusões com bebida em bar. A família tentou pagar fiança, mas o preso dizia preferir ficar ali atrás das grades do que voltar para casa. A única solução para os familiares foi chamar pelo Dr. Espir que, mais uma vez tirou o pijama, vestiu o terno e colocou a gravata partindo rapidamente para a delegacia. Ao deparar-se com o preso indócil e cheio de teimosia devido à bebedeira não querendo deixar a prisão, Dr. Espir então se decidiu passar a noite na cela com o seu estimado amigo com pena de deixá-lo sozinho.


Ao amanhecer, a bebedeira do amigo havia passado e ambos saíram do xadrez conversando, rindo muito e cada qual foi para sua casa.

Assim era a vida do advogado que vestia a camisa do povo. Contudo, havia momentos em que ele sentia necessidade de ficar só. Permanecer em casa não resolveria, pois todos o encontravam lá. Andando pelas ruas era abordado a todo instante. Foi quando descobriu que o melhor lugar para descansar um pouco era entrar no cinema. Seu primo, Joaquim Mariano, era o gerente do Cine São Carlos e dizia que quase todas as noites Dr. Espir estava lá para cochilar durante a exibição dos filmes.


Obs.: Joaquim Mariano, pouco tempo antes de falecer, enviou-me uma mensagem por meio de sua filha Jacqueline pelo Facebook a qual foi publicada no grupo Guaxupé Destaca: “Rosângela, seu pai foi um dos homens mais corretos que eu conheci na vida”.


AS VOLTAS NA MADRUGADA AO REDOR DO CORETO


Dr. Espir apreciava trabalhar e bater papo de madrugada. Preferia dormir no período da manhã e trabalhar em sua máquina de datilografia dizendo que havia mais silêncio para que ele se concentrasse melhor nos textos jurídicos.

Sempre que encerrava algum trabalho, seguia até a Avenida Conde Ribeiro do Valle mesmo que fosse alta hora da madrugada para caminhar ao redor do coreto. Sabia ele que, lá estariam velhos e queridos amigos boêmios como ele para conversar e acompanhar o seu caminhar.


Por mais incrível que possa parecer, antes de o sol nascer, sempre surgia alguém que lhe abordava para tirar dúvidas e pedir conselhos como advogado. E com toda naturalidade e calma, Dr. Espir dava a sua consulta sob as estrelas e ao som dos grilos do chamado ‘Jardim Debaixo’, hoje Praça dos Bambolês.


Mesmo que não houvesse nenhum amigo para lhe fazer companhia na avenida, Dr. Espir cumpria seu ritual de andar em volta do coreto ainda que sozinho. Essa cena era comum aos jovens que voltavam tarde para casa e o viam caminhando e curtindo a madrugada a qual tanto amava. Todos lhes acenavam as mãos já acostumados a ver aquele homem de paletó e gravata sempre cordial e sorridente engajado com o clima da noite.


Seguia para casa quando o dia começava a clarear e se deitava em busca do descanso. Mas a cada meia hora levantava-se para atender ao chamado de um cliente. Tirava o paletó de pijama e vestia o terno para prestar seu serviço. Quando a consulta terminava, voltava a vestir o pijama e dormir novamente. Até que, após alguns minutos, alguém batia à porta perguntando por ele e o ritual do tira e põe o paletó se repetia.


O mais admirável era que ele nunca ficava de mau-humor quando o tiravam da cama. Mesmo sonolento, sorria com simpatia e dava toda a atenção possível ao problema do cliente. Quando tudo se resolvia, no momento de cobrar ele avaliava se devia ou não aceitar o pagamento com receio de que o dinheiro fosse fazer falta à pessoa.


Certa vez, ele atendia a um senhor da cidade quando chegou um idoso de bengala e um jeito muito humilde para fazer uma consulta. Levando em conta a idade da pessoa, Dr. Espir pediu licença ao cliente que chegara antes para passar o idoso na frente. Após atender ao velhinho, ele se despediu do advogado que não lhe cobrou pelo serviço.


Quando o ancião se foi, o senhor que aguardava perguntou ao advogado o motivo de ele nada ter cobrado nada do velho homem. Dr. Espir respondeu que sentiu pena e que muito provavelmente o velho homem passava por momentos financeiros muito difíceis. Eis que o cliente caiu na gargalhada e disse: “Mas doutor, esse velhinho é cheio do dinheiro. Tem muitas casas lá para os lados do Morro Agudo. Esse dinheiro não iria fazer nenhuma falta a ele”.


PERSPICAZ OU HUMANO DEMAIS?



Um senhor chegou aflito procurando pelo Dr. Espir. Era proprietário de uma casa e queria que o inquilino a desocupasse devido ao atraso do pagamento do aluguel. O advogado pediu-lhe o endereço do devedor dizendo que iria procurá-lo para resolver a questão. Afobado para que tudo se concluísse de forma acelerada, o cliente lhe pagou adiantado.

Ao chegar na referida residência, meu pai deparou-se com o inquilino. Um homem com semblante preocupado e muito assustado. Ele tinha filhos pequenos e estava desempregado. Não tinha para onde ir com a família. O advogado disse que iria tentar encontrar um meio de ajudá-lo perguntando quanto ele devia ao dono da casa. O homem lhe disse o valor e Dr. Espir pediu-lhe que voltasse a falar com ele no dia seguinte em seu escritório.


Conforme o combinado, o inquilino o procurou. Meu pai, apanhando o dinheiro que já havia recebido do proprietário, entregou-o nas mãos do homem dizendo para ele pagar o dono da casa para que pudesse permanecer no imóvel mais um tempo até encontrar um serviço. E assim foi feito e tudo resolvido.


Obs.: Dr. Espir muitas vezes foi taxado de ‘mão de vaca’ por não dar à família uma casa de alto padrão e uma vida mais confortável à esposa. Mas tais atitudes em ajudar ao próximo as quais ele jamais comentava, davam provas contrárias aos comentários imerecidos. Um dia ele me disse que era um homem que sabia trabalhar mas que não aprendeu a ganhar dinheiro. E acrescentou que previa que não poderia deixar algum bem ao meu irmão e eu. Mas que faria de tudo para nos formar em uma faculdade e termos cada qual uma boa profissão. Segundo acreditava, dinheiro e bens podem acabar. Porém, o conhecimento ninguém nos tomaria. Assim, o filho caçula, Dr. Rogério Felippe, seguiu a carreira do nosso pai e se tornou um dos advogados mais conceituados na área empresarial na cidade de São Paulo. Ocupou cargos de gerente jurídico em empresas como Gessy Lever, Kaise do Brasil, CPTM, entre outros.


HÁ HISTÓRIAS E MAIS HISTÓRIAS


Sr. Raimundinho Macedo foi um homem muito dedicado ao próximo. Não se constrangia em pedir ajuda à população para manter o tradicional almoço de Natal dos mais carentes da cidade. Mas em uma das casas ele nunca se deu ao trabalho de bater à porta para pedir uma contribuição, a casa do Dr. Espir. Era notado que Sr. Raimundinho não procurava pelo advogado para pedir nada. Porém, nem ele e nem o Dr. Espir davam qualquer explicação. Anos após o falecimento do meu pai, fui visitar Sr. Raimundinho e sua esposa que foi amiga de juventude de minha avó. Fui recebia com muito amor pelo casal.


Em um dado momento, Sr. Raimundo me chamou até o jardim e me disse em tom de voz voz bem baixinho: “Não quero morrer sem antes lhe contar sobre seu pai. Eu nunca pedi contribuição a ele para o almoço dos carentes porque, na época certa, ele chegava até aqui em casa e me entregava um envelope com uma quantia em dinheiro e me pedia para não dizer a ninguém que ele colaborava. Seu pai não gostava que se falasse de suas atitudes de caridade e fraternidade. Era um homem discreto e não fazia questão de aparecer”. Foi a última vez que estive com o querido Sr. Raimundinho. Logo ele adoeceu e partiu. Mas não sem antes me dizer algo que me deixou muito feliz e, por que não dizer, orgulhosa.


Sim, há mais histórias e histórias. Algumas eu ouço, e outras se perderam no tempo e quem sabia contá-las provavelmente não esteja mais aqui. De qualquer maneira, não há como contar nesta página todas as que ouvi. Seria preciso um livro com capítulos fartos de fatos sobre meu pai.


E, muito além de atitudes nobres, Dr. Espir foi um grande sentimental. Chorava com as tristezas dos amigos e sorria com suas alegrias. Nunca foi competitivo. Seus colegas advogados eram como seus irmãos, principalmente Dr. Arthur Leão e Dr. André Cortez Granero. Considerava que todos tinham o direito de ter seu lugar ao sol e de criar bem suas famílias. Não conheceu o sabor amargo da inveja. Era feliz por ser como era e jamais poderia mudar. Sua luz maior era a bondade e essa jamais alguém conseguiria apagar.


Quando ele partiu, amigos que nos últimos tempos o visitavam não mais passaram pela porta da rua de casa. Diziam não ter coragem de entrar e não ver mais o grande amigo. Sim, deixou forte saudade. Soube cativar grandes e profundas amizades. Há, ainda hoje, gratidão nos olhos de muitos com quem conviveu e nunca o esqueceram. Há emoção nos olhos de muitos que se encontram comigo e se lembram dele com saudade.


Como já revelado, Dr. Espir não tinha ambições. Ele se contentava com o necessário e considerava que mais valia ajudar a quem nada tinha do que somar tesouros na terra. Foi um guerreiro pacífico e ponderado, sempre usando como arma o amor pelo próximo. Assim, defendeu aqueles que viviam às margens da sociedade com a mesma intensidade com a qual defendeu os mais privilegiados pela sorte. Não tolerava injustiça e jamais se negou a prestar serviços a um cliente que não tinha condições de remunerá-lo. A dedicação era a mesma e o trabalho sempre bem concluído, quer recebesse ou não pelo o que fez. Envolvia-se com as dores daqueles a quem atendia. Lutou bravamente para defender uma ré confessa que assumiu a culpa de um assassinato cometido pelo filho. A mulher preferiu colocar-se atrás das grades do que ver o rapaz aprisionado por anos. Por mais que meu pai tentasse convencê-la de que ela deveria dizer a verdade e que ele faria de tudo para livrar seu filho da prisão, ela lhe dizia que protegeria o filho ainda que tivesse que dar sua própria vida. Tempos depois, ela contraiu tuberculose e veio à óbito. A tristeza que se abateu sobre meu pai foi visível. Durante toda sua vida nunca se conformou com este fato. Para ele foi a sua experiência mais dolorosa como profissional.


Muitas vezes incompreendido, foi capaz de perdoar as ofensas que sofreu sem nunca revidar. Jamais deu as costas a alguém, mesmo quando era vítima de pessoas de almas pouco esclarecidas. Em algumas ocasiões, conquistou críticas descabidas por procurar manter seu trabalho no caminho da retidão. Por mais que alguém insistisse, ele não usava seu trabalho para favorecer a ganância de alguém que lhe exigisse conduta inadequada no exercício de sua profissão. Com isso, foi antipatizado por poucos que consideravam que o advogado tinha o dever de burlar documentos para favorecê-los, sobretudo em partilhas de bens. Preferia ser alvejado por maledicências, como algumas vezes foi, do que manchar a imagem de sua notável integridade. Portanto, jamais se rendeu a quem quer que fosse mesmo que pudesse levar vantagem financeira. Sua frase preferida era: “Neste vida ninguém perde por ser honesto”.


HOMEM DE MUITA FÉ


Dr. Espir era dotado de fé sublime em Nossa Senhora Aparecida com quem contou todos os dias de sua vida como protetora maior. Era sob o seu manto que ele se fortalecia e se reerguia após os períodos mais conturbados que viveu. Por mais difícil que fosse uma situação, ele a tudo suportava porque tinha total convicção de que a Virgem Aparecida o amparava.


Quando ele se foi, seguiu leve como pluma incandescente que alcança o céu logo após o último suspiro. Escolheu os meus braços para partir. Recostou a cabeça em meus ombros, apertou a minha mão e sorriu como quem enxergava o caminho iluminado da liberdade e da eternidade. Guardo esse sorriso para sempre. Foi o modo como Deus pôde me dizer que meu pai partia em paz e que sua missão foi plenamente cumprida na terra. Mesmo seus defeitos foram ingênuos e nunca maldosos. Ele sempre procurou não ferir ninguém. Ele sempre procurou caminhar reto, mesmo que o caminho não fosse o mais curto.

Hoje, ouço filhos e netos de amigos dele dizendo o quanto os pais ou os avós admiravam e gostavam do meu pai. Essa foi a herança mais rica que ele deixou ao filho Rogério, às netas Stella, Renata, Rafaela e Manuela e aos bisnetos Guilherme e Helena. Uma herança de valor incalculável a qual advogado algum saberia como proceder diante do inventário. Uma herança que poucos podem contar em suas poupanças magras ou gordas. Uma herança que somente quem possui sabe como é valoroso ter tido Dr. Espir como pai.


A LIÇÃO E A COMPROVAÇÃO


Quando criança, passeava pelas calçadas de mãos dadas com o meu pai pelas ruas de Guaxupé. Mesmo pequena, já notava que ele cumprimentava todas as pessoas com quem se cruzava e sempre dizia algo simpático como, por exemplo: “Sr. Fulano, manda lembranças minhas para Dona Fulana...”.


Eu perguntava por qual razão ele cumprimentava tanta gente. A resposta era sempre a mesma: “Todo mundo gosta de atenção. Todo mundo gosta de gentileza e uma palavra amiga. Não custa nada agradar as pessoas com um sorriso e um cumprimento”.

Assim aprendi e cultivei esse hábito por toda a minha vida. Até que, muito tempo após a sua morte, eu trabalhava como jornalista responsável pelo setor de assessoria de imprensa da Agencia DM9. Após um ano de serviço, precisei me afastar da empresa devido a um mioma hemorrágico que consumiu a minha saúde. Com cirurgia marcada, tive de enfrentar o dia da despedida dos colegas na agência. Triste, fiquei, muito triste. Gostava das pessoas e da empresa. Era bem tratada por todos.


Após despedir-me, estava aguardando o elevador para ir embora, o segurança de plantão pediu para eu esperar um pouco porque havia algumas pessoas que queriam falar comigo. Fiquei surpresa e sem imaginar quem seriam elas. Até que, no início do corredor vi se aproximando um verdadeiro cortejo formado pelas equipes de seguranças, bombeiros, faxineiros e copeiros. Eles vieram em minha direção e pararam diante de mim dizendo que queriam se despedir e me desejar boa sorte. Enquanto abraçava um por um, perguntei-lhes o que havia feito para merecer tanta consideração. A resposta de um segurança foi imediata: “Você é a única nessa empresa que ocupa cargo bom e nunca deixou de nos cumprimentar e falar com a gente”.


Já dentro do elevador, senti que meu pai, mais do que nunca, foi meu maior mestre neste mundo. Foi graças aos ensinamentos dele que tive essa grande prova de que o respeito ao próximo é o procedimento mais digno que podemos assumir na vida.

Parabéns Dr. Espir pelo seu aniversário e pelo Dia dos Pais. Que a vida eterna lhe seja sempre feliz. Voe cada dia mais alto, pois o universo da luz foi conquistado pelos seus feitos na terra. E, com certeza, muitos dos que o apedrejaram hoje o abraçam com respeito e muito amor. Sim, como você sempre me dizia: “Perdoar sempre vale a pena. O que não vale é guardar ressentimentos e rancores”.


Obrigada por ter feito da minha vida um caminho de incansável persistência, por não ter me dado nada de bandeja, por me mostrar que o que quero colher é minha obrigação cultivar e que dividir o que plantei é meu dever diante de Deus.


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