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O CIRCO CHEGOU!

Rosângela Felippe, jornalista


Marcos Frota no Circo dos Sonhos

Não importava a simplicidade e a poeira daqueles bancos duros, tortos e bambos. Quando ali sentávamos, sentíamo-nos prontos a assistir ‘O Maior Espetáculo da Terra’! Não existia emoção maior para o coração de uma criança guaxupeana do que se deparar com palhaços, malabaristas e trapezistas com roupas coloridas e cintilantes. Na época, pouca coisa acontecia de exuberante em nossa infância. Eram, portanto, os circos que nos traziam o melhor cenário de quimera.


Início dos anos 50. O sobradinho em que morava com a família ficava na esquina da Avenida Conde Ribeiro do Valle com a travessa que dava passagem aos circos e aos parques itinerantes, hoje, a Rua Mancini. Em dias de espetáculos colocavam-me sentada sobre a mureta da varanda onde eu pudesse ver a multidão que seguia afoita para assistir às atrações.


O caminho para os circos tornou-se conhecido na cidade como: ‘a galeria’. Era uma tênue descida sem calçamento onde se formava um áspero tapete de cascalhos que começava na entrada da nossa casa e desembocava onde elevavam as lonas velhas e perfuradas. Ao longo da galeria, havia um pequeno córrego por onde escoava, dia e noite, um filete de água que mais parecia um esgoto a céu aberto devido ao mau cheiro e à sujeira levada pela chuva.


Eu me lembro do vozerio animado da rapaziada descendo a ladeira. Naquele tempo, os jovens trajavam calças escuras e camisas sociais claras, mesmo quando iam ao circo. Os calçados eram sociais com cadarços e costumeiramente engraxados e lustrados. Os que tinham cabelos jeitosos e volumosos penteavam-nos para trás formando altos topetes no estilo James Dean. Os que tinham cabeleiras rebeldes emplastavam os fios com brilhantina para que o vento não os desajeitasse.


As moças seguiam de braços dados balançando as saias estampadas e rodadas. Ao caminhar, requebravam os quadris fingindo não ser proposital. Com certo pudor, evitavam virar a cabeça para os lados para não parecer que estavam ‘dando confiança’ aos rapazes.


Mas com ‘o rabo de olho’, flertavam com aqueles que lhes atraíam. Os cabelos curtos e ondulados exigiam-lhes certos cuidados: Elas os lavavam pela manhã, embebiam as mechas em cerveja e as enrolavam com papelotes para que ficassem aneladas, pois as jovens modernas naquela época não usavam cabelos escorridos. Quando estavam na avenida a caminho dos circos, o ‘toc toc’ dos saltos finos anunciava suas chegadas. Ao pisarem o chão da galeria, caminhavam vagarosamente para que os saltos não se fincassem na terra ou se quebrassem entre os pedregulhos.


Famílias inteiras seguiam rumo aos circos. Muitos vinham das fazendas trazendo filhos que se engatavam um ao outro para que não se perdessem. Em um gesto zeloso, as mulheres da roça despiam um dos seios e caminhavam alimentando seus bebês no meio da multidão sem acanhamento pois, para elas, o gesto de amamentar era um dever sagrado no momento em que o filho procurava a sua fonte de alimento.


Enquanto as pessoas desciam a galeria feito procissão, o som do alto-falante corrompido pelo vento entoava canções que falavam de amores infelizes, principalmente nas vozes de Nelson Gonçalves, Orlando Dias e Francisco Alves. Lembro-me da canção que fazia mais sucesso: “Quero Beijar-te As Mãos”, interpretada por Anísio Silva. Até que, ouvia-se o rufar dos tambores e o toque das trombetas seguidos por entusiásticos aplausos. Era a magia do circo que começava e se espalhava entre a poeira erguida do chão. Eis quando, os pequenos vendedores de tirolê (doce de açúcar queimado), sorrateiramente passavam por debaixo das lonas e assistiam ao espetáculo sem pagar. Caso não conseguissem nada com sua astúcia, ficavam do lado de fora assistindo por meio dos buracos e rasgos dos velhos e surrados panos.


Mal sabia eu que, ainda tão pequena, assistia da porta de casa uma dos movimentos mais liberais já provados pela cidade. Pessoas de todas as classes sociais descendo a ladeira ansiosas para conseguir um lugar na arquibancada onde não havia lugares demarcados. Uns ao lado dos outros, sem julgamento, sem restrições e sem elitismo. Era o magnetismo do circo que abria as cortinas para um cenário verdadeiramente democrático, em uma época em que jovens de famílias de baixo poder aquisitivo só podiam caminhar e namorar no ‘Jardim de Baixo’ (Praça dos Bambolês); um tempo em que, frequentar o clube mais ‘elegante’ da cidade não era um direito de todos; uma fase em que estudar no colégio das freiras era privilégio apenas de filhas de doutores que podiam pagar mensalidade. Mas o circo apagava toda essas tradições antiquadas e reunia, em um só espaço, todas as almas guaxupeanas. E somente agora, na maturidade, compreendo que esse foi, sem dúvida, o melhor espetáculo que os circos de Guaxupé me permitiram assistir.

DESFILANDO PELA CIDADE


Quando um circo se anunciava em Guaxupé, sua presença era aclamada pelas pessoas de todas as idades e classes sociais, pois não havia a televisão e nem o teatro. Os filmes de sucesso quando eram exibidos no Cine São Carlos já haviam sido rodados por meses nas capitais e as cópias vinham arrebentadas. Na maior parte do tempo, a acidade vivia em uma atmosfera de intensa monotonia, o que enobrecia a presença dos circos e das quermesses religiosas, sobretudo as tão comemoradas festas de Nossa Senhora Aparecida e de São Sebastião.


Ao chegarem à cidade, os artistas circenses, trajando roupas de espetáculos, desfilavam pelas ruas soltando fogos e promovendo suas apresentações. A molecada saía em disparada para ver as comitivas que apresentavam hábeis acrobatas, malabaristas, mágicos e bandas desafinadas. Os palhaços matreiros misturavam-se com as pessoas provocando-lhes altas gargalhadas. Os homens das pernas de pau caminhavam com cuidado sobre os lisos paralelepípedos, enquanto que as belas contorcionistas exibiam com graça seus corpos esbeltos e flexíveis.


Algumas companhias circenses quando iam a Guaxupé, levavam ao picadeiro, além das apresentações tradicionais, produções teatrais que comoviam profundamente os espectadores. As peças encerravam o espetáculo da noite e narravam, sobretudo, a vida de santos católicos e seus milagres. Porém, talvez pelo amadorismo ou pelo estilo de apresentação da época, os atores não se expressavam com espontaneidade. As inflexões de voz eram demasiadamente exageradas, o que chegava a assustar as crianças levando muitas delas ao choro amedrontado. Eu me recordo de, ainda pequena, ter assistido a história de Santa Bernadete. Ao longo da encenação, o elenco emitia gritos e choros tresloucados. Lembro-me dos gestos descomedidos, principalmente durante os atos em que ocorriam os milagres. No momento em que Santa Bernadete falecia, a atriz que interpretava a madre superiora que perseguiu e maltratou a santa, soltou a sua voz grave em tom de prantos de forma assombrosa: “Perdoe-me Bernadete, eu agora creio! Eu creio! Eu creio! Eu creio!”. Durante a noite, tive muitos pesadelos com aquela personagem.


O CIRCO NO FUNDO DO QUINTAL DA AVÓ PATERNA


O quintal da casa de minha avó paterna, localizada na Avenida Conde Ribeiro do Valle, estendia-se até o terreno onde os circos se instalavam. Dona Olimpia, sempre generosa, permitia que as famílias circenses se abastecessem à vontade de água potável em sua cisterna para que pudessem cozinhar, matar a sede, lavar suas roupas e se banhar.

Menina e curiosa, eu me relacionava com as crianças que acompanhavam os pais e nos tornávamos amigos. Por muitas vezes, pude subir em um picadeiro e brincar de ser ‘artista de circo’. Assim, durante anos, convivi com os pequenos itinerantes que, quando partiam, deixavam-me triste, pois compreendia que, ao se despedirem de mim, nunca mais os veria.

Até os meus 12 anos, pude conviver com aquela gente que fazia tantas coisas que pareciam irreais. Foi nesta idade que, brincando de faz de conta no picadeiro, vi chegar ao cenário um jovem moreno, de cabelos negros e com o tórax largo e desnudo. Habilmente, dominou o trapézio e começou a balançar jogando o corpo de um lado para o outro como se fosse mais leve do que o ar. Pela primeira vez na vida eu me apaixonei. Ele sequer me notou, pois, eu era apenas uma menina no meio de tantas outras a brincar de ser uma grande artista no circo das ilusões.


Assim, desde pequenina, gostava de ver aquelas pessoas no quintal da minha avó. Lembro-me de assistir a diversos ensaios e me espantava ao perceber que os palhaços eram pessoas comuns porque, ao natural, não tinham rostos coloridos. Penso eu que, foi a partir daí que percebi que na vida dos adultos também existe o ‘faz de conta’.


Cada vez que um circo ia embora da cidade, levava um pedaço de mim, pois com ele partiam os amigos pequenos como eu. Nossa amizade era apenas uma ‘ilusão circense’ a qual começava e acabava como um mero espetáculo da vida. 

O cheiro de serragem espalhada pelo chão, o rufar de tambores, a terra avermelhada onde se cravavam os mastros, as lonas rasgadas e a vida rude daquela gente ainda me perseguem como uma encenação da saudade que vestiu a roupa de palhaço e se pintou com as cores do passado.


Velhos circos de Guaxupé! Só quem viveu pode avaliar o que eu sinto, pois também fez parte desta platéia de doce nostalgia. Hoje, as crianças que éramos, somos as Senhoras e os Senhores a quem os apresentadores se dirigiam anunciando que iria começar o ‘Maior Espetáculo das Nossas Vidas’: O Circo!


Dedicatória


Crônica dedicada ao conterrâneo Marcos Frota que, assim como todas as crianças da nossa época, encantou-se para sempre com a magia do circo em nossa Guaxupé. (Rosângela Felippe)


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