
ROSÂNGELA FELIPPE
No passado, época em que na região de Muzambinho havia netos de quilombolas fugidos das minas de ouro de Minas Gerais e das fazendas de cana e café de São Paulo, havia muitas pedras e com elas foram construídos muros. Um desses muros ainda resiste ao tempo no distrito da cidade com sua imponência histórica. Vale lembrar que, o nome Muzambinho originou-se do termo Mocambo (cujo significado na língua africana é acampamento de escravos fugitivos).
A obra atravessa um trecho do Sítio Córrego do Passa Quatro, mais conhecido como Sítio do Nico, local de rara beleza hoje cuidado pela guaxupeana Leda Pasqua Nasser, a primogênita de Nico.
Leda, um dia procurou-me para falar sobre o muro e suas tentativas em conseguir seu tombamento. Pela sua visão, trata-se do registro histórico memorável. Porém, encontrou grandes dificuldades junto aos órgãos competentes devido ao alto custo para se conseguir a preservação do muro.
O assunto, além de seu valor cultural, comoveu-me ao lembrar que, tão próximo a esse muro encontra-se uma fazenda que um dia pertenceu ao meu avô paterno: Santa Esméria.
De fato, é um tema de interesse de todos nós que vivemos na região. É um pedaço do nosso passado.
Sugeri, então, que Leda escrevesse um texto narrando tudo o que sabe sobre essa construção para que pudesse ser desenvolvida uma matéria para a Revista Mídia.
Segue abaixo seus relatos curiosos. Confio que um dia toda a região se mobilizará para que seja realizado o tombamento desta obra que deve ser perpetuada para as próximas gerações.

“Na década de 70, meus pais, nascidos e residentes em Guaxupé (MG), adquiriram um sítio no município de Muzambinho(MG). Era localizado entre o povoado de Moçambo (atualmente, bairro de Muzambinho) na divisa de Muzambinho/Guaxupé.
O terreno adquirido era descampado. Havia um vale com um córrego e um morro curvo. No meio da curva, havia uma grota. O terreno era bem pedregoso. No alto do morro havia um muro de pedras que fazia divisa.
Com o tempo, meus pais moldaram este terreno com um trabalho artesanal. Cada pedacinho do sítio tem as mãos deles: Muitas árvores plantadas por eles cresceram e eram nativas. O muro, aos poucos, foi se escondendo no meio da vegetação. Ficou menos visível e quase esquecido.
Com o avanço da idade dos meus pais, a prioridade tornou-se para mim a qualidade de vida deles. E o muro foi mais esquecido ainda. Porém, com o falecimento de ambos, fui verificar a situação dele e deparei-me com uma farta vegetação que o cobria. Havia grandes árvores que o envolviam com suas raízes e cipós. Algumas partes bem preservadas e outras alteradas pelas águas das chuvas.
Meu pai dizia que o sítio havia sido um grande mangueiro (curral de porcos). O muro teria sido erguido para a contenção destes animais. Este mangueiro estaria em posição privilegiada porque ficava próximo à estação ferroviária Mogiana de Moçambo. Não havia como transportar estes animais. Eles iam caminhando até a estação para serem embarcados para outras cidades. Havia donos de porcos que andavam três ou mais dias para chegar à estação.
Questionamentos
Quem teria construído este muro e com qual finalidade? Seria muro de divisa? Delimitação de estradas? Contenção de animais? Poderia ter sido construído para demarcar divisas entre grandes fazendas e depois ser reutilizado como mangueiro?
A verdade é que a construção do muro é elaborada e planejada. Mais ou menos com um metro de altura. pedras colocadas uma sobre as outras sem argamassa. Pedras grandes e outras menores. Pedras, na maioria, em formato achatado que é o padrão de pedras deste terreno.
Em Minas Gerais foram usados muros de pedras com propósitos acima descritos nas regiões pedregosas. Onde não havia pedras, foram usados valas em forma de U com um metro de profundidade.
O muro do sítio percorre a divisa no alto do morro. Ao passar pela grota, ele sobe alguns metros e reaparece mais para frente onde faz uma curva e começa a descer antes do córrego. Esta parte que desapareceu deve ter sido soterrada com barro de chuvas muito fortes.
Com tais questionamentos, é importante citar que, a região de Cabo Verde, Muzambinho, Serra de Nova Resende, Guaxupé, Jacuí e Guaranésia abrigaram quilombos. Um grande sertão e rios que se dirigiam a estes locais favoreceram os escravos fugitivos e os quilombolas a se instalarem e formarem seus acampamentos quilombos.
No artigo “Por Entre Valos e Muros de Pedras” (revista Museu, 18 de maio de 2016) – Fundamentos para salvaguarda e musealização de paisagens culturais de Minas Gerais (escrito por Marcos Paulo de Souza Miranda e Luciano J. Alvarenga), os muros de pedras e valos foram largamente utilizados na época em que a mão de obra escrava era abundante. Eram usados para demarcação de divisas entre propriedades por não haver arame farpado, para criação de animais ou delimitação de estradas.
Tais vestígios arqueológicos mantiveram-se na paisagem por várias gerações. Muitos foram retirados para dar lugar a plantações, pastos, rodovias e ferrovias. As grandes fazendas foram sendo retalhadas e os muros e valos foram desaparecendo. Para o que sobrou, levanta-se a possibilidade de musealização destes espaços. E, também, a responsabilidade de manutenção e permanência deles por parte dos proprietários.
Num trecho do muro onde sua trajetória é reta e próxima à mina d`água, há ruínas de uma casa com alicerce de pedras. No lado inferior desta casa há um outro muro menor. O padrão deste muro é diferente do muro grande. As pedras são menores e a disposição delas menos elaboradas. Pode-se especular se este seja mais recente e feito por um número menor de pessoas devido ao tamanho pequeno das pedras. No muro grande há pedras de maior porte que exigiria um grupo de construtores para erguê-las.
O Muro do sítio e a iniciativa para o tombamento
O muro do sítio de meus pais poderia ter sido maior do que é atualmente. Quando se chega na divisa com outros sítios, ele vai desaparecendo. Penso que deveria continuar em linha bem mais reta. Por algum motivo prático, foi desmanchado.
Já na região do morro da mata e bambus, ele teria a função de contenção de animais. Mas trata-se de especulações minhas. O fato é que me senti responsável por ele. Fizemos a limpeza da região e no morro. Foram feitas trilhas pela mata para se chegar até os locais onde ele se encontra.
Procurei o Museu de Muzambinho para uma orientação sobre a possibilidade de se conseguir o tombamento. Foi-me perguntado sobre possíveis documentos e assinatura. Não tenho nenhum dos dois.
Em seguida, disseram-me ser necessário um perito para levantamento de data e mão de obra. Porém, essa perícia, no momento, não é possível porque é dispendiosa e a fase imprópria devido à pandemia.
Na minha convivência com este muro, durante meses de limpeza e manutenção da área, neste isolamento sanitário surgiu uma familiaridade e intimidade muito grande com os construtores, mesmo sem saber quem eles são.
Assim, gostaria de deixar registrado que admiro o trabalho e esforços deles. Percebo a dificuldade pelas quais devem ter passado e a luta diária pela sobrevivência. Se a mão de obra foi escrava, peço desculpas pela condição a que foram submetidos. Se foi mão de obra quilombola, apesar da dureza do trabalho, parabenizo e felicito-os por terem lutado pela sua liberdade. Seja quem forem estes construtores, agradeço-os pela obra que foi preservada na propriedade da minha família. Sinto, bem no íntimo, que é propriedade deles também. Enfim, deixaram, sim, sua assinatura”. (Leda Pasqua Nasser)
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